Desmundo foi um filme perturbador para mim. Assisti-o tempo inteiro com as mãos na cabeça por causa de suas cenas fortes. Mas é um filme excelente, com uma produção riquíssima. O melhor de tudo é que ele é uma obra que acrescenta, tanto do ponto de vista histórico quanto do lingüístico.
Transcrevo abaixo a minha análise sobre ele. Não sei se consegui abranger nela tudo o que vi, mas busquei relacionar o filme às nossas discussões em sala e às minhas opiniões sobre os fenômenos da Mudança e Variação Lingüísticas.
Desmundo: Uma análise histórico-lingüística
Baseado no romance de Ana Miranda, Desmundo é um filme perturbador, pois nos fala de um Brasil desconhecido para muitos, com histórias capazes de impressionar a qualquer um. O filme se passa no século XVI, onde vários índios já haviam sido escravizados e catequizados. Por meio da história da protagonista Oribela, uma das órfãs mandadas para o Brasil para que se casassem com os colonos, o filme fala sobre um período conturbado da História do Brasil, no qual pode-se perceber claramente a existência de camadas sociais já bastante distintas, o preconceito contra índios e mulheres, a mistura de povos interessados na riqueza do território brasileiro e os abusos de poder numa terra sem lei e esquecida pela corte portuguesa. Para demonstrar tantos aspectos, o roteiro do filme conta com uma riqueza de detalhes que vai além da natureza histórica e alcança uma excelente reprodução lingüística.
No período histórico que o filme reproduz, o português falado no Brasil era extremamente heterogêneo, devido à mistura de povos que aqui residiam. No entanto, havia uma comunicação efetiva, porém, ela era notadamente marcada por variações próprias de cada uma das línguas maternas faladas pelos colonos, bem como de suas regiões de origem e escolaridade.
É importante ressaltar que grande parte do povo que residia no Brasil daquela época era marginalizado, pois, durante muito tempo, os povos europeus só enviaram para o Brasil os seus cidadãos indesejados. Portanto, a variedade do português que aqui se falava, além de ter todas as variações anteriormente citadas, já era estigmatizado pelos portugueses, afinal, não se tratava da variedade de prestígio.
Assim, nota-se que os fenômenos de mudança e variação lingüística existem desde sempre, afinal, a língua é muito mais do que um meio de comunicação, é uma forma de expressão cultural que acompanha as necessidades e as diferenças de cada povo sem, no entanto, perder a sua riqueza. Se a sociedade muda, como esperar que a sua língua permaneça a mesma?
Contudo, nunca existiu um consenso acerca desse questionamento. Mesmo hoje, que já existem centenas de estudos sobre os fenômenos lingüísticos, ainda há quem defenda o uso de uma linguagem minoritária e excludente, que perpetua um preconceito sem fundamento e marca ainda mais as desigualdades sociais historicamente herdadas.
Admitir o uso de uma língua imutável ou impor o uso de uma única variedade é jogar fora anos de evolução, conhecimento e cultura. Chega a ser contraditório pensar que estudiosos, pessoas que se dizem letradas e cultas concordem com uma idéia tão ultrapassada e diversas vezes refutada. Entretanto, não é difícil entender, pois este é o velho princípio da dominação, mostrando mais uma de suas facetas.
É preciso analisar a língua sob o prisma da comunicação e do entendimento, pois estes são princípios comuns a todas as variedades. Isso não significa que se deve abolir o estudo e o uso da norma culta; o que se deve fazer é aprender qual variedade deve ser usada em determinado momento e, sobretudo, aprender a respeitar as diferenças nas suas mais variadas formas, inclusive lingüísticas.
Além disso, também é necessário rever a prática pedagógica das escolas e professores, para que os alunos não vejam a Língua Portuguesa como algo distante e inalcançável. Pelo contrário, a Língua Portuguesa dos ricos e letrados é a mesma dos mais pobres e com menor escolaridade. O que existe, na verdade, são diferenças as quais não se pode atribuir maior ou menor valor. Somente assim será possível construir uma cultura mais próxima da igualdade, de forma que as pessoas não sejam julgadas por seus “erros de fala e escrita” ou por qualquer outra forma preconceituosa ou depreciativa.